Entrada IV – 24/03

Destacado

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Essa noite eu tive um sonho. E não foi do tipo bom. Eu caía da janela mais alta da torre mais alta de um castelo situado acima das nuvens. No sonho era como se eu caísse havia anos através da escuridão, passando pela névoa que turbilhonava à minha volta. Eu não sabia voar, portanto tudo o que podia fazer era cair. O chão estava há mil quilômetros de distância, mas sentia que se aproximava depressa. Sabia o que me esperava lá embaixo. Mesmo nos sonhos não se pode cair para sempre. No final, você acorda. Certo? Acima de mim, as estrelas dançavam como vaga-lumes. Ouvi uma voz familiar sussurrar ao meu ouvido. Voe, ela disse. Ali, na escuridão, o sussurro atravessou o meu corpo como um vento gelado. Um calafrio me arrepiou a alma. — Eu não posso voar — desabafei sentindo minhas entranhas revirando quando atrevi mirar para baixo. — Eu não sei como. — Desviei o olhar do meu destino. – Como você sabe? — respondeu a voz, suave como seda. — Alguma vez já tentou? – Procurei ao meu redor. Parecia não haver nada além de uma névoa cinzenta, estrelas e trevas. Através do véu da nebulosidade notei uma ave que descia em espiral comigo, longe do meu alcance. — Me ajude — clamei. — Estou caindo. — Estou tentando — replicou a voz. — Mas você precisa voar. Olhe para baixo. – A ave se aproximou revelando a forma de uma coruja. Sua penugem lembrava a primeira neve do inverno e seus olhos eram como um euclásio lapidado. Pousou em meu ombro e passou a cair comigo. O chão continuava distante, mas menos do que antes. — Você é mesmo uma coruja? — questionei. — Você está mesmo caindo? – retorquiu a coruja. — Creio que não, é só um sonho. Eu acordo quando atingir o chão. — Quando atingir o chão, você morre. Estremeci. Suas palavras eram duras, mas a doçura com a qual entregou tão terrível verdade me lembrou de Lizz. Lizz? Essa voz… Era a de Lizz! Com um salto a coruja entregou-se ao ar novamente, me acompanhando enquanto viajávamos de encontro ao solo. Ousei olhar para baixo de novo. Minha visão se embaçou e, por um momento, perdi o ar. Ao voltar meus olhos para as estrelas notei que já não me acompanhavam. A neblina uivava ao meu lado enquanto mergulhávamos para a terra. Entretanto, pude distinguir montanhas com seus picos gelados, vales com os verdes da primavera e rios que desapareciam em florestas negras. A cidade devia estar logo abaixo de mim, mas temi confirmar esse instinto. – Voe – voltou a sugerir a coruja que soava como Lizz. Tateei meu corpo a procura de asas. Nada. Senti meu coração pular um batimento. Fechei os olhos e desejei ter asas. Nada. Tentei imaginar ser o dono de asas como Ícaro uma vez ousara sonhar. Nada. O chão corria em minha direção. – Há outros tipos de asas – falou abruptamente. — Do que você está falando? — questionei ofegante. Uma certeza horripilante se formou no meu interior. — Me diga o que está acontecendo, Lizz. — Tudo parecia muito real. Sentia batidas fortes no meu tórax. — Estou lhe ensinando a voar. – Real demais para ser um sonho. Meu coração acelerou e meu medo se manifestou em forma de fúria. — Eu não posso voar! — gritei. — Você está voando agora mesmo. — Estou caindo! Estou caindo, Lizz. Me ajude! — Senti o suor me encharcar e meus lábios tremerem. Eu não podia olhar para baixo. E eu não podia voar. — Me ajude, por favor! Me ajude! — A fúria se transformava em desespero. – Todo voo começa com uma queda – sussurrou calmamente. – Não há o que temer. Eu estou com você. – Meus olhos marejaram. – Agora, olhe para baixo. – Sua delicadeza me fez obedecer e neste instante o ar parou de entrar nos meus pulmões. O chão estava muito próximo. Identifiquei o topo dos edifícios e as pessoas ocupadas como formigas caminhando nas calçadas. Eu caía mais depressa do que nunca e não havia aprendido a voar. Como uma criança, permiti que o pânico tomasse conta de mim. Tranquei meus olhos e tremi. — Tenho medo — balbuciei com o pouco ar que me restava. – Mas você está voando. Apenas olhe para baixo. – Foi a última coisa que a coruja me disse. Apertando minhas pálpebras umas contra as outras e trincando os dentes a ponto do meu maxilar estalar, senti a vertigem do mundo rodopiando a minha volta. Soube que estava próximo do chão quando o cheiro de fumaça e o barulho das sirenes invadiram meus sentidos. Meu destino havia me alcançado e não havia nada que eu pudesse fazer. Decidi obedecer Lizz. Enfrentaria a minha sina. Arquejante e com o coração explodindo meu peito, apontei a face para baixo. Ouvi uma forte buzina e arregalei os olhos. O escuro do quarto me confundiu de início, mas logo notei estar sentado em nossa cama. Lizz dormia ao meu lado. Minha respiração ofegante a acordou e eu cambaleei na penumbra a procura do banheiro. Meu suor pingava no porcelanato branco dando a impressão de ter recém saído de uma ducha. Abri a torneira na escuridão e levei as mãos trêmulas cheias de água ao meu rosto, esfregando as pálpebras. A luz do banheiro me cegou por uns segundos e vi Lizz de pé com a mão no interruptor. Seus olhos azuis estavam assustados. Com sua preocupação transparecendo, me questionou o que havia acontecido. — Nada. — Eu ainda ofegava. — Só um sonho estranho. Um pesadelo eu acho. Eu estava caindo e… — Não se preocupe, meu bem. – Interrompeu Lizz com sua voz macia. – Foi só um sonho. – Se aproximou de mim e me abraçou carinhosamente, sem se importar com o meu corpo suado. – Sabe o que eu faço quando estou caindo em um sonho? — O que? — Questionei encarando sua pele pálida através do espelho. – Eu voo…